a tarde se desfazia no horizonte
no aconchego do quarto
abriu a janela da torre mais alta
entreviu a claridade pela fresta
um momento de hesitação: entrou
fechou cuidadosamente a tranca
peixes violáceos deram-lhes passagem
abraçou a árvore centenária de onde pendiam genes ancestrais
achou uma pequena chave que murmurava segredos
brincadeiras secretas e porões que não queria visitar
as nuvens avermelhadas mancharam de sangue a tarde
conteve-se!
Olhou a pedra desabrochando
afiou com ela a faca dos seus dias
alguns passos e lá estava Van Gogh girando em círculos multicores
os relógios de Dali, há tempos descosidos!
Um carcará deixou uma sombra alaranjada no chão
um filete d’água escorreu do céu da boca
tornando-se um caudaloso rio
transformou-se na mulher peixe
com sua cauda esmeralda
mergulhou na fossa abissal
resistiu, não era hora!
Melhor brincar com nuvens de brinquedos de crianças
comer doces e, quem sabe, virar Peter Pan?
A chave continuava retinindo no fundo da memória
a árvore secular resistindo
uma prateleira com chaves!
A chave do segredo?
Ouviu a voz doce da mãe do tempo
lá no fundo da caverna
que ficasse por lá!
Ordenaria que dissipassem as nuvens de chuva
queria lua prateada e estrelas no céu
ninhos de aves prenhes de vida
flores de formatos e cores ímpares
desejou voltar - o barqueiro havia sumido
a onça de olhos gateados mostrou as presas
das íris amareladas escorreram mel
desejou retornar
o sol há muito já se fora
a boca da noite com seu céu prateado trazia mistérios
era urgente voltar!
Os seios pendentes das árvores-mães não destilavam leite
destilavam pedras afiadas
a alma amortecida não sabia ler os sinais de fumaça
era prisioneira em sua torre
restava-lhe experimentar todas as chaves
os segredos foram se desvelando
alguns!
Outros tantos
ficaram à espreita!