sábado, 27 de agosto de 2011

Mergulhos em pedras

a tarde se desfazia no horizonte

no aconchego do quarto

abriu a janela da torre mais alta

entreviu a claridade pela fresta

um momento de hesitação: entrou

fechou cuidadosamente a tranca

peixes violáceos deram-lhes passagem

abraçou a árvore centenária de onde pendiam genes ancestrais

achou uma pequena chave que murmurava segredos

brincadeiras secretas e porões que não queria visitar

as nuvens avermelhadas mancharam de sangue a tarde

conteve-se!

Olhou a pedra desabrochando

afiou com ela a faca dos seus dias

alguns passos e lá estava Van Gogh girando em círculos multicores

os relógios de Dali, há tempos descosidos!

Um carcará deixou uma sombra alaranjada no chão

um filete d’água escorreu do céu da boca

tornando-se um caudaloso rio

transformou-se na mulher peixe

com sua cauda esmeralda

mergulhou na fossa abissal

resistiu, não era hora!

Melhor brincar com nuvens de brinquedos de crianças

comer doces e, quem sabe, virar Peter Pan?

A chave continuava retinindo no fundo da memória

a árvore secular resistindo

uma prateleira com chaves!

A chave do segredo?

Ouviu a voz doce da mãe do tempo

lá no fundo da caverna

que ficasse por lá!

Ordenaria que dissipassem as nuvens de chuva

queria lua prateada e estrelas no céu

ninhos de aves prenhes de vida

flores de formatos e cores ímpares

desejou voltar - o barqueiro havia sumido

a onça de olhos gateados mostrou as presas

das íris amareladas escorreram mel

desejou retornar

o sol há muito já se fora

a boca da noite com seu céu prateado trazia mistérios

era urgente voltar!

Os seios pendentes das árvores-mães não destilavam leite

destilavam pedras afiadas

a alma amortecida não sabia ler os sinais de fumaça

era prisioneira em sua torre

restava-lhe experimentar todas as chaves

os segredos foram se desvelando

alguns!

Outros tantos

ficaram à espreita!

Flor da idade

O tempo desabrochou a flor

que sedenta posta os olhos no caminho

tempo tempo tempo

sucos na pele

alma/identidade.



sábado, 6 de agosto de 2011

São João

Mês de junho já chegou,

Mês de junho já passou...

Ainda não vi meu São João do carneirinho

Cadê o mastro do santinho?



Macaquitos no sotão


A primeira vez que ouvi a expressão “macaquitos no sótão” fiquei bastante intrigada. Não me lembro de quem a pronunciou. Um rosto de mulher com uma expressão indecifrável me vem à mente. Seu nome e as circunstâncias se foram.
Eu, por minha vez, imaginei logo vários macaquinhos em tremendo alvoroço, revirando malas abarrotadas de cartas antigas, baús cheios de fotos amareladas, visitando recantos escuros e empoeirados. Pensei em cadernos de primeiras letras, desbotados pelo tempo com as garatujas infantis, jogados ao chão, folhas amassadas e arrancadas.
Veio-me à memória a fotografia da minha primeira professora: Dona Abigail – magra, circunspecta e com uma régua em riste. Que destroços esses macaquitos não fariam ao vê-la assim? Sempre se fingindo de brava. Anos se passaram, aquela menina impressionável se foi, mas a dona Abigail continua lá, no sótão, sempre tão séria e fechada que tenho a impressão que vai montar em sua vassoura e levantar voo. E agora é que vai mesmo: com toda essa bagunça!
Mas, pensando bem... Não tem desordem que resista a uma verruga na ponta do nariz!